Posted On

01
setembro
2016

Chama Dorival

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoTudo já foi dito sobre Dorival Caymmi, o “Buda Nagô”, na definição concisa e antológica de Gilberto Gil. Sempre que vou à Bahia (“Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia”), a “Terra de branco mulato / Terra de preto doutor”, os seus sambas compõem a trilha sonora no meu coração – quando não vou, também.

São canções que, de tão naturais aos ouvidos, parecem saídas da cultura oral, do anonimato do povo, do útero, direto para o peito da gente. Em mim, elas provocam uma saudade indizível, ainda mais no momento que vivemos agora no Brasil: sombrio, injusto, canalha, golpista.
É melhor chamar Dorival. Aquieta, ensina. Aquela Salvador – “São Salvador / Bahia de São Salvador / A terra do nosso Senhor / Pedaço de terra que é meu” – continua cantando e encantando a gente, repara só. A Bahia das “trezentas e sessenta e cinco igrejas”, que ele contabilizou como se fosse uma para cada dia do ano, de algum jeito misterioso ainda reza por nós.

Apesar da pobreza e da violência que lembram muito o Rio de Janeiro de agora, para além da maquiagem publicitária e da mídia seletiva e covarde, as águas da Baía de Todos os Santos – como as da Guanabara – ainda banham uma cidade que teima em resistir (mais do que nunca é preciso teimar e resistir).

Mas, chama, chama Dorival! Bota pra tocar aqueles sambas todos e quem sabe vamos conseguir de novo enxergar e encontrar, inclusive dentro de nós, os valores e a garra daquela gente mais simples e as suas crenças, suas danças, suas tranças.

Chama! Chama porque a obra de Caymmi, finita no espaço, é inesgotável no tempo. Ela nasceu da liberdade que foi sua companheira por ruas, mercados, praias, festas de bairro, terreiros, na Cidade Baixa, no Abaeté, no Pelourinho, no Rio Vermelho, na Barra, no samba-de-roda da Itapoã dos anos 30 e 40…

Nada tira o frescor dessa obra. Nem esse hoje cheio de incerteza e vazio de gentileza, quando a ela, a liberdade, está ameaçada. Nem o braço pesado da globalização, nem os cretinos, nem a intolerância. E nem o lixo chamado axé music.

Chama Dorival porque as suas músicas são o canto da preta velha que desde sempre embala a alma da gente. Elas são o homem, a comida, o mar, o amor, as malícias, as ladeiras, os mistérios, os sobrados onde moram a criança que todos fomos um dia – “Nas sacadas dos sobrados / Da velha São Salvador / Há lembranças de donzelas / Do tempo do Imperador”.

Melhor do que falar de Caymmi é ouvir os seus sambas. “Lá vem a baiana”, “Você já foi à Bahia?”, “Vatapá”, “O que é que a baiana tem?”, “Acontece que eu sou baiano”, “Dois de fevereiro”, “A vizinha do lado”, “365 igrejas”, “Rosa Morena”, “São Salvador”, “Saudade da Bahia”, “O samba da minha terra”, “Noite de temporal” et cetera e tal.

Escute. Renove-se. Eles vão lembrar a você, entre outras coisas, que resistir é preciso. E que um outro Brasil é possível. É “só jogar a rede e puxar”.

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