Posted On

29
setembro
2016

Nelsoncavaquinistas

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoNelson Antonio da Silva, o Nelson Cavaquinho, é um velho conhecido. Ainda pequeno, já o ouvia, e muito, pelo canto de Beth Carvalho, voz que me apresentou a todos os sambistas de que mais gosto e com a qual aprendi a cantar, aos dois anos de idade.

Tempos depois, ainda criança, conheci a sua voz rouca, fanhosa, embriagada (embora na época não identificasse isso com tanta precisão). Desde então, virei nelsoncavaquinista.

Ele é uma força que não se explica com a lógica, um artista imenso e ao mesmo tempo plenamente ao alcance do coração de quem ouve os seus sambas. É um artesão que entorta as nossas expectativas e nos conquista imediatamente. Não tem volta.

É nisso que penso, é isso que sinto quando ouço os sambas de Nelson, ainda mais quando cantados por ele mesmo. Como no disco “Nelson Cavaquinho”, um dos que mais gosto na vida. Trata-se de um CD de 2004. Mas que é a íntegra de um LP gravado em 1972.

Obra-prima é pouco para definir esse trabalho antológico. Primeiro, porque ouvir Nelson por ele próprio é quase como revê-lo, entrar no mundo em que ele viveu e que tanto inspira quem ama o samba da rua, do bar, da roda. Sua voz de quarta ou quinta dose, cheia de saudade e de melancolia, é de uma beleza sem par. Além disso, porque nesse disco estão tanto sambas que se tornariam clássicos como outros, pouco conhecidos e que se revelam, ainda hoje, “apenas” extraordinários.

Estou falando, no primeiro caso, de músicas como “Folhas Secas”, “Rugas”, “Minha Festa”, “Quando eu me chamar saudade”, “A Flor e o Espinho”, “Palhaço”, “Degraus da vida”, “Notícia” e “Sempre Mangueira”. Mas também me refiro a belezas lancinantes como “Luz Negra”, “Tatuagem”, “Eu e as Flores”, “Deus não me Esqueceu”, “Lágrimas sem Júri” e “Luto”.

Difícil explicar, mas você acaba de ouvir esse disco diferente de quando começou. Nelson fala da sarjeta e do divino com um misto de reverência e intimidade que só tem quem conhece as entranhas da alma humana. Nesses sambas, está o artista único que ele é, o compositor que vaga pelos bares da Praça Tiradentes, da Lapa, da Mangueira. Está o sambista desapegado que vendia sambas em troca de comida e bebida e que nunca teve o sucesso fácil e vazio.

Nelson Cavaquinho é um gênio extemporâneo, de melodias raras e versos curtos. É poeta de um lirismo inacreditável quando fala sobre as suas – as nossas! – maiores obsessões: a morte, o amor, a dor, Deus. Tudo naquela “enxuteza”, por assim dizer, que é marca registrada dos seus sambas. E tudo numa simplicidade comovente, a que só os grandes gênios são capazes de chegar.

Nelson – autor, com Guilherme de Britto, de alguns dos mais bonitos versos já escritos em língua portuguesa (“Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor” e “Organizaste uma festa em mim”) – é como um elixir, um doce remédio recomendado em altas doses diárias para se entender (e levar) melhor a vida.

Termino por hoje com as palavras do pesquisador, jornalista e escritor Sérgio Cabral, escritas no encarte desse mesmo LP de 1972: “Nelson Cavaquinho é, rigorosamente, um puro (…). Ouça-o como se estivesse penetrando no âmago de um criador fabuloso. E você entenderá melhor os seus versos e as suas intenções. E gostará muito da sua voz cheia de cachaça, de sofrimento e de boemia. E o amará como nós — os nelsoncavaquinistas — o amamos”.

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