Jovelina

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoHoje eu quero falar de Jovelina Pérola Negra. A empregada doméstica pobre que cantava enquanto cozinhava e lavava roupa, até que foi “descoberta” e se tornou uma das principais vozes do samba a partir dos anos 1980. Uma voz cheia de ginga, de personalidade, de ancestralidade.

Jovelina foi embora muito cedo. Não importam os motivos e os excessos de uma vida boêmia potencializada pelo sucesso repentino. O que importa é que Jovelina continua viva. Nas rodas de samba, no seu cantar único e dentro do coração de todo sambista.

Sugiro a você que escute a Pérola Negra cantar. Um samba aqui, outro ali, escolhidos ao acaso mesmo. Ouça clássicos como “Luz do Repente”, “Feirinha da Pavuna”, “Garota Zona Sul”, “Banho de Felicidade”, “Menina, você bebeu”, “Catatau”. Mas vá além. Preste atenção no lirismo de músicas como “Liberdade Plena” e “Laços e Pedaços”, esta obra-prima pouco lembrada de Wilson Moreira e Nei Lopes. Você vai entender o que estou tentando dizer. É uma pancada de emoção atrás da outra.

Há, no entanto, outras razões para se deixar levar, sempre e para sempre, pelo samba e pela voz de Jovelina. Uma delas é que o seu canto traz no vento o clima das grandes rodas de samba do passado, que muitos de nós só conhecemos pelas histórias que ficaram. Histórias como aquelas das madrugadas do Pagode da Beira Rio, em Oswaldo Cruz, onde Jovelina, ainda desconhecida, virava noites versando de improviso no partido alto.

Foram histórias assim que fui procurar algumas vezes por aquelas bandas. Anos atrás, aproveitando o Pagode do Trem – trazido de volta por Marquinhos de Oswaldo Cruz para celebrar anualmente o Dia Nacional do Samba –, perambulei por dezenas de rodas na mesma Beira Rio, onde se tocava o fino do samba. Por algum tempo, achei que a máquina do tempo tinha funcionado e vivi momentos mágicos sob a bênção de grandes sambas do passado.

Lançada comercialmente durante o chamado “boom do pagode”, Jovelina caiu nos braços do público junto com uma turma maravilhosa que incluía, entre muitos outros, Elaine Machado, Mauro Diniz, Pedrinho da Flor e Zeca, até hoje o capitão desse navio. E esse contexto – no qual ela veio, viu e venceu – vai além de letras, melodias e sons de cavaquinhos, tantãs e pandeiros.

A voz e a música de Jovelina são parte de uma atmosfera que faz a gente ter saudade até do que não viveu, se é que vocês me entendem. Por isso é que ouvi-la cantar traz sempre uma emoção funda e a certeza de que uma outra cidade é possível, mesmo longe do mar e da grande mídia de sempre, para quem o Rio de Janeiro se limita apenas à Zona Sul (a não ser quando tem os seus próprios interesses econômicos).

A voz e a música de Jovelina vão deixando no ar (e na gente) a aura dos grandes sambistas, dos precursores, dos inventores – o repique de Ubirany, o banjo de Almir Guineto –, a imensa novidade que foi o samba feito na quadra do Cacique de Ramos na década de 70. Elas nos transportam a muitos e muitos pagodes, como o da Tia Doca (o original, lá atrás no passado), o do Clube do Samba (o primeiro, no quintal de João Nogueira, no Méier), o Pagofone do Cachambi (do meu querido Josenir, o Negão da Abolição, que sempre revive aquele tempo nas rodas que ainda hoje organiza), o Pagode do Arlindo (na Cascadura dos anos 80), o do Osmar do Cavaco (na mesma década, em Marechal Hermes, onde segundo reza a lenda se deu o encontro de Aniceto do Império com Zeca Pagodinho), o da Tia Ciça (na quadra do Boêmios de Irajá), além de tantos e tantos outros.

Pode não parecer. Mas tudo isso é, também, Jovelina Pérola Negra.

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