Canto na fresta

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasO enredo da Renascer de Jacarepaguá para o carnaval de 2017 – O papel e o mar – merece um destaque não apenas momentâneo: ele já tem lugar reservado na história do carnaval. O encontro imaginado entre Carolina Maria de Jesus e João Cândido, fabulando cartas de Carolina para o Almirante Negro, é dos enredos mais fascinantes dos desfiles em décadas. Inspirado no curta-metragem de mesmo nome do cineasta Luiz Antonio Pilar e desenvolvido pelo compositor Claudio Russo, também autor do samba ao lado de Moacyr Luz e Diego Nicolau, ele se inscreve em uma tradição poderosa do nosso carnaval.

Digo isso porque, historicamente, as escolas de samba tiveram, sobretudo a partir da década de 1960, um papel de vanguarda pedagógica no Brasil: apresentar personagens, temas, episódios, à margem da História Oficial, aquela baseada em relatos aparentemente neutros de grandes feitos, efemérides e heróis do panteão.

As mesmas escolas de samba, que nas décadas de 1940 e 1950, se limitavam a falar dos galardões, medalhas e brasões da pátria, assumiram um papel pioneiro a partir de certo momento. Um papel que os colégios não desempenhavam, os meios de comunicação ignoravam e os livros didáticos raramente enfrentavam.

Quando o Salgueiro de Fernando Pamplona apresentou, inspirado em um livro censurado de Edison Carneiro, o seminal Zâmbi dos Palmares (Quilombo), em 1960, Zumbi era um personagem que não aparecia nas salas de aula brasileiras. O herói era Domingos Jorge Velho, o bandeirante que trucidou o povo quilombola. Chica da Silva e Chico Rei vieram no mesmo barco, arrebentando em vermelho e branco, através da avenida, a cerca que não os fazia chegar ao ensino formal.

Eu nunca tinha escutado falar de micro-história, história a contrapelo ou história do cotidiano no colégio (só na faculdade travei contato com essas linhas de estudos), mas já tinha visto a cabrocha Lili desfilar sua formosura na feira livre da Caprichosos de Pilares e me emocionado com o cotidiano do perrengue de uma viagem no trem da Central, ramal Japeri, cantado pela Em Cima da Hora. Hoje sei, dentro da minha profissão, que ali estava o drama humano que me interessa, como historiador, abordar e entender com paixão e método.
Foi escutando samba-enredo que eu, ainda menino, soube da Guerra de Canudos, da peleja do caboclo Mitavaí contra o monstro Macobeba, da literatura de Lima Barreto, do drama da seca do Nordeste, da vida fabulosa do pai de santo Hilário de Ojuobá. Foi escola de samba que me falou de Teresa de Benguela e do Quilombo do Quariterê, da Confederação dos Índios Tamoios, das lendas dos orixás, dos mitos de origem dos Carajás e de tanta coisa do tipo.

Instituições complexas, em constante diálogo com a conjuntura, as escolas de samba não se enquadram em modelos prontos. Cantaram a história oficial, se renderam aos patrocínios mais esdrúxulos, louvaram o regime militar, contestaram o regime militar, e retrataram a vida de celebridades duvidosas de ocasião.

Ao mesmo tempo, contaram as historias dos que foram apagados por certas versões da História, deram o protagonismo aos Zumbis, Conselheiros, Aimberês e Teresas de Benguela. Louvaram Luiz Gonzaga, os poetas do cordel, os caboclos de umbanda, os orixás, as iabás, as mães de santo e do samba.

Uma simples pergunta que deixo no ar me parece ressaltar a importância do enredo da Renascer de Jacarepaguá: quantas brasileiras e brasileiros conhecem a epopéia de João Candido e a escrita preta, cotidiana, contundente e desafiadora de Carolina Maria de Jesus?
Encaradas por muitos como meras empresas do setor turístico, as escolas de samba podem e devem ser muito mais que isso. Elas podem ser também poderosas instituições culturais de vanguarda; terreiros em que o canto celebrado em tambor escuta a voz potente de brado de vida daqueles que, muitas vezes, cantaram na fresta a chance de um Brasil mais generoso.

Veja Também

Artigos Relacionados

Categorias

Navegue por Assunto

Recentes

As Últimas da Arquibancada