Posted On

15
dezembro
2016

Ela, o samba e eu

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoFoi ela quem me ensinou o que era samba. E a amá-lo de cara, antes mesmo de eu me saber gente.

Depois, aos dois anos e pouco, contaram-me, foi um samba gravado por ela a primeira música que aprendi a cantar inteira (“Meu Deus, mas para que tanto dinheiro / Dinheiro só pra gastar / Que saudade eu tenho dos tempos de outrora / Que vida que eu levo agora”). Portanto, aprendi a cantar ouvindo a sua voz.

Com ela, primeiro subi, depois desci, mais de mil e oitocentas colinas. Mais adiante, cantava “Não chora, neném / Meu bem / Não chora, neném / Meu bem” e “Não sei quantas vezes / Subi o morro cantando / Sempre o sol me queimando / E assim vou me acabando”… Ali já estava, sem saber, marcado para sempre por esse tal de samba, um som assim encantado para os meus ouvidos de menino.

Bem cedo na vida, caí de amores pelas palavras e expressões que havia nos sambas que ela cantava para mim, nos discos que iam rodando – e ficando arranhados – na vitrola de casa. Não sabia o significado de “Dente por dente / Olho por olho / Se tentar me enganar / Bota as barbas de molho”. Mas gostava do som das palavras, do ritmo, daquela levada indescritível.

Assim, fui aprendendo com eles (ela e os sambas). Por exemplo: “Escasseia” apresentou-me à, digamos, “lei das compensações da vida”: “O santo que faz milagre também castiga / O chão que dá flores também da urtiga / A mulher que ama também odeia / E tudo que dá em abundância escasseia”. Na mesma linha era “Vou Festejar” (“Você pagou com traição / A quem sempre lhe deu a mão”). O que eram abundância, traição, escasseia eu não sabia direito. Mas isso não tinha a menor importância.

Foi na voz dela que ouvi, pela primeiríssima vez identificando que ele era ele, Martinho da Vila: “Volta pro morro / Teu lugar ainda está vazio / Vim te pedir um socorro / Pra nossa escola que agora só tem samba frio”. Também Paulinho da Viola, com a gravação maravilhosa dela de “Desilusão, desilusão / Danço eu, dança você / Na dança da solidão”. E, ainda, a Velha Guarda da Portela: “A chuva cai lá fora / Você vai se molhar / Já lhe pedi: não vá embora / Espere o tempo melhorar / Até a própria natureza / Está pedindo pra você ficar”.

Foi ela quem me apresentou um gênio da raça de nome Nelson Cavaquinho – que eu, criança, não entendia o porquê do apelido se em todas as fotografias que me mostravam ele estava com um violão. E fez o mesmo com outro genial compositor, Cartola, que deu “As Rosas não Falam” para ela cantar.

Aí, quando eu tinha seis, sete anos, ela e o samba já eram meus velhos conhecidos. E todo ano ela “chegava” de novo lá em casa com músicas novas, lindas – de onde saía aquilo tudo, meu Deus?

Então, mesmo sem saber quem eram, foi por meio dela que, enquanto crescia, conhecia os versos e as melodias de Dona Ivone Lara (“Sonho Meu”), Jorge Aragão (“Tendência”), Nei Lopes e Wilson Moreira (“Goiabada Cascão” e, sobretudo, “Morrendo de Saudade”), Almir Guineto (“Pedi ao Céu / Um remédio que possa curar / Essa chaga de amor em meu peito / Devagar ela vai me matar”). E Fundo de Quintal, Arlindo Cruz, Luiz Carlos da Vila, Sombrinha, Beto Sem Braço, Zeca Pagodinho…

Com ela sempre por perto nasci, cresci, cresci um pouco mais. Adolescente, por razões óbvias de temporária mudança de gostos musicais, ela ficou um pouco de lado.

Mas o tempo continuou andando e um dia a presença dela voltou com tudo, trazendo de volta para mim, inclusive, um pouco da criança que eu tinha sido. Havia letras que eu nunca tinha esquecido. Sambas que – como pode? – jamais haviam saído da minha cabeça. Rimas, batidas, melodias aos montes que em momento algum me abandonaram.

Voltei ao samba, passei a ir ao samba, a bebê-lo no gargalo nesse Rio de Janeiro de Deus (e do Diabo). Nunca mais me separei dele.

Com a sua voz, ela chegou a Marte antes de qualquer um de nós. E me levou junto. “Coisinha do Pai” ecoou na Via Láctea, o robozinho acordou, sambou, a vida seguiu.

Eu, tendo o samba como companheiro, sorri, chorei, brinquei, namorei, casei, descasei, casei. Com ele fui (sou) pai.

Ela, vocês já sabem, é Beth Carvalho. Essas mal escritas linhas, vocês também já entenderam, querem apenas homenageá-la, assim, do nada mesmo, e dizer o quanto eu gosto dela, mesmo sem conhecê-la, a não ser de vista, numa ou duas vezes em que nos cruzamos em rodas de samba por aí.

Tenho 41 anos. Outro dia, fazendo as contas, concluí que ela e o samba estão na minha vida, nos meus ouvidos e no meu coração há mais tempo do que isso. É que preciso levar em conta o período em que eu ouvia os sambas da Beth enquanto ainda morava na barriga da minha mãe.

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