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29
dezembro
2016

Martinho

EDUARDO CARVALHO

“Vai ter que amar a liberdade
Só vai cantar em tom maior
Vai ter a felicidade
De ver um Brasil melhor”

eduardo-carvalhoO samba “Tom Maior” foi gravado no disco Martinho da Vila, de 1969, o primeiro daquele compositor que se tornara conhecido do grande público em 67, no III Festival da Canção, realizado pela TV Record em São Paulo. Antes, em 1965, ele havia chegado à escola de samba Vila Isabel, no famoso bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro cantado por Noel Rosa nas primeiras décadas do século XX.

Esse samba se tornaria um clássico, assim como outros que lhe faziam companhia no mesmo long play, caso de “O Pequeno Burguês”, “Casa de Bamba”, “Quem é do Mar não Enjoa” e “Iaiá do Cais Dourado”, por exemplo. E foi com “Tom Maior” que Martinho, naquela virada dos anos 60 para os 70, passou a encerrar as noites de samba do mitológico show Opinião, no Teatro de Arena, em Copacabana.

O Opinião, como se sabe, foi desde 1964 uma importante peça de resistência cultural à ditadura militar que fodeu com o Brasil durante 21 anos, eliminando liberdades, torturando e matando pessoas. O espetáculo acontecia semanalmente e lançou ou projetou grandes nomes da música brasileira, gente como João do Vale, Zé Keti, Nara Leão e Maria Bethânia.

Distante dali no tempo e no espaço – mas perto na intuição e no gosto musical –, no fim de maio de 1975, na cidade de São Luís, Maranhão, a minha mãe voltava a dar plantões como pediatra. Eu tinha 21 dias de vida. Quando ela chegava da jornada, madrugada alta, e me encontrava acordado, era ao som desse mesmo samba, na vitrola e no sussurro, que me confortava e me fazia dormir de novo (lá se vão quase 42 anos – não é, mãe?).

E daí?

Daí que resolvi recorrer a esse samba lindo – que fala de um ser que ainda vai nascer (“Está em você / O que o amor gerou”) e que “vai ter que amar a liberdade” – para expulsar este ano cretino que nos arranjaram aqui no país. Daí que, por meio desta tela fria em que vou sendo lido, é assim que entrego o meu desejo de mudança e o meu desprezo à intolerância e aos canalhas: em modesto embrulho de letras brancas sobre fundo azul, como fosse partitura de um samba de Martinho da Vila.

O Martinho, mãe! Esse que há 50 anos embala o sono e os sonhos da gente, dos brasileiros que reconhecem no samba o espelho e a terapia para as suas dores e para os seus amores. Esse mesmo, de sambas bonitos de doer, de ginga única, criador até de uma nova divisão no cantar.

Foi por causa dele que lá em casa a Vila Isabel sempre foi a nossa segunda escola de samba. Era, assim, o nosso América, faço-me entender?, só que mais querida, sempre aguardada nos carnavais, mítica e mística para nós.

Era Martinho quem nos cantava “Na minha casa todo mundo é bamba / Todo mundo bebe, todo mundo samba”. Ou “Canta, canta, minha gente / Deixa a tristeza pra lá / Canta forte, canta alto / Que a vida vai melhorar”. Ou ainda: “Dinheiro, pra que dinheiro? / Se ela não me dá bola / Em casa de batuqueiro / Só quem fala alto é viola”. E mais: “Menina moça vai passear / Vai passear, Iaiá / Quer rapazinho pra acompanhar / Pra acompanhar, Iaiá”. Lembra, mãe?

Eu me lembro de tudo, inclusive do encanto com o qual você sempre falou de “Disritmia”, quando ele usa esse termo da medicina (“Me deixe hipnotizado / Pra acabar de vez / Com essa disritmia”) para falar do homem que, bêbado, pede à mulher que o recoloque no prumo, que o cure do porre – mas uma cura pelo amor. Caramba… Como não trazer dentro da gente, me diz?, a beleza incomensurável que é esse samba?

É a mesma beleza de letras e melodias que nos comovem mesmo quando cantam o suor dos que se amam (“Fêmea felina que lambe meu suor / Minha caça perseguida / Meu sentimento maior / Minha canção preferida / Meu acorde em tom menor” – “Jaguatirica”, de Martinho e Zé Catimba); e até, repara só, a masturbação: “Quando a saudade bate forte, é envolvente / Eu me possuo e é na sua intenção / Com a minha cuca naqueles momentos quentes / Em que se acelerava o meu coração”, poesia pura de Martinho em “Ex-amor”.

Então, daqui a pouco, quando acabar esse 2016 que já vai tarde, é com a arte de Martinho da Vila que eu quero seguir em frente. É com ela e com o samba (a única saída, sempre) que, devagarinho, eu quero renascer das cinzas do dia a dia descolorido e plantar de novo o arvoredo.

É sonho? Pode ser. Mas um sonho escrito e cantado por Martinho José Ferreira. Assim, ó: “Sonhei / Que estava sonhando um sonho sonhado / O sonho de um sonho / Magnetizado / As mentes abertas / Sem bicos calados / Juventude alerta / Os seres alados / Sonho meu / Eu sonhava que sonhava / Sonho meu / Eu sonhava que sonhava”.

Feliz sonho novo pra vocês.

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