Posted On

14
outubro
2016

Malas no samba

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoO casal chegou e parou diante da roda. Pareciam, ela e ele, hipnotizados com o que presenciavam. Duvido que já tenham visto aquilo – pelo menos não daquele jeito.

Parados durante algum tempo, apenas olhavam. Olhavam-se. De repente, um movimento: “Vamos chegar mais perto (será que podemos)?”, era o que pareciam se perguntar com os olhos. Nesse momento, notei que arrastavam uma mala.

Já umas onde da noite, o samba comendo solto, e agora a cena começava a fazer sentido. Aquela mala de rodinhas dava boa pista da procedência do casal. Um resumo da história que imaginei na ocasião: paulistas, já haviam ouvido falar daquele terraço do Clube Santa Luzia, que na época (antes de virar moda de certa elite) era a gostosa “laje do samba” no Centro do Rio; pois bem, desembarcaram de mala e cuia naquele chão de cimento, vindo direto do aeroporto Santos Dumont, ali ao lado.

Daquele terraço debruçado sobre a Baía de Guanabara, ficaram tão encantados com todo aquele clima do samba que demorou um pouco até se instalarem de verdade. Isso só aconteceu quando ele a deixou por um tempo tomando conta da mala e foi buscar cerveja. Lembro-me até hoje como foi emblemática aquela cena do poder de sedução que o samba causa em quem vai até ele e o descobre de peito aberto.

Aquela mala, naquela noite de tantos anos atrás, foi uma mala simbólica, histórica. Mala que integrou, incluiu, que deu vez a quem chegou como o samba sempre pede: sem frescura, mas devagar e com respeito. Mala diferente em tudo dessas que andam por aí, sem alça, contaminando o ambiente e enchendo o saco da gente.

“Tem muito prego junto”, o Zulu me disse certa vez, certeiro, enquanto circulava pelo salão do Carioca da Gema com o balde cheio de garrafas de cerveja, que ele tocava feito um instrumento, circulando pelo salão para vender as geladas. Tinha anos e anos na noite e entendia como poucos de todos os tipos de malas.

Durante dez anos, Zulu serviu a gente com categoria e estilo. Quando a Lapa começou a voltar a ser a Lapa, ele estava lá. Dava expediente no primeiro antiquário que de dia vendia móveis antigos e, de noite, era palco de grandes rodas de samba. Depois, a nova Lapa foi ficando cada vez melhor e cada vez pior, dependendo do ponto de vista. Zulu então andou pela Bahia até voltar a trabalhar no Carioca, quando este abriu e não era ainda tão turístico e badalado – época em que começaram a chegar os muitos “pregos” que tanto o (nos) incomodavam.

Se o reencontrasse um dia eu continuaria lhe dizendo para não ligar tanto assim para eles. Porque o importante é que malas como a daquela noite no Samba Luzia, de rodinha e tudo, continuem se juntando à paisagem, simbolizando a abertura que o bom samba, o samba de verdade, dá a quem quiser chegar sem ser mala, sabe como é?

Só assim é que, num piscar de olhos, você pode ser logo batizado de prego ou de boa-praça. Ou, dito de outra forma, só desse jeito é que você pode fazer parte de um casal de mala e não de uma mala de casal. E isso continua fazendo muita, mas muita diferença, tanto no samba como na vida.

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