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10
novembro
2016

Apoteose ao samba

eduardo-carvalhoEDUARDO CARVALHO
Noutro dia passei em frente ao belíssimo palácio Gustavo Capanema, no Centro do Rio, um marco da arquitetura moderna brasileira que já foi sede do Ministério da Cultura, quando a cidade ainda era a capital do Brasil. Há ali uma obra que nunca termina e o prédio está cercado de tapumes, desde que o governo ilegítimo e golpista de Michel Temer determinou que o local fosse esvaziado na marra, ocupado que estava havia mais de um mês por manifestantes contra o golpe de estado que foi dado no país.
O fato é que, ao olhar para o prédio e para o muro da intolerância que hoje o rodeia, lembrei-me de uma cerimônia muito especial que presenciei ali no dia 9 de outubro de 2007: no fim da tarde desse dia, o samba foi declarado oficialmente Patrimônio Cultural do Brasil. Jamais me esquecerei daquele momento, que volta hoje como uma saudade de um tempo com menos burrice no ar e menos intolerante.
Foi ali dentro, sobre os pilotis do Capanema, que há nove anos o samba se viu oficialmente alicerçado, como um edifício de brasilidade que não pode ser demolido. De volta ao presente, parei para observar um pouco mais as linhas curvas da construção e recordei o que me disse na ocasião Nilcemar Nogueira, diretora do Centro Cultural Cartola, neta do grande compositor e responsável pelo requerimento que levou ao tombamento:
– O samba agora está vestido em traje de gala – ela resumiu, com lágrimas nos olhos.
Na sua argumentação vitoriosa, o requerimento feito pelo Centro Cultura Cartola foi muito feliz ao afirmar que “tombar o samba é desmistificar o conceito de que se deve preservar apenas o concreto e o que é produzido pelas elites”. E o parecer dos técnicos do Iphan foi claríssimo ao dizer que uma expressão cultural se torna patrimônio se a ela são atribuídos “valores históricos, memoriais, estéticos, artísticos ou afetivos; se está enraizada, há gerações, no cotidiano de parcelas significativas da população e permanece fazendo parte da sua vida”…
No fim do evento, Nelson Sargento – rodeado por alguns sambistas – puxou “Apoteose ao Samba”, de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola. Uma presença de espírito incrível do Sargento, por se tratar de uma obra-prima que, desde o título, tudo tinha a ver com o momento. “Samba / Quando vens aos meus ouvidos / Embriagas meus sentidos / Trazes inspiração / A dolência que possuis na estrutura / É uma tentação / Vai alegrar o coração daquela criatura / Que com certeza está sofrendo de paixão”.
Corta de novo para 2016. Com esses versos na cabeça, apertei o passo na direção do primeiro botequim para brindar ao samba e às nossas raízes mais autênticas. Até porque hoje, tempo de sucessivas derrotas para os que acreditamos num país e num mundo mais justo, progressista, democrático e menos desigual, aquele título conquistado pelo samba nove anos atrás representou a vitória de muita gente, de muitos sambistas de todas as épocas.
O samba-patrimônio foi motivo de muito orgulho por ter significado, na prática, o reconhecimento definitivo da história tão bonita de um ente querido de todo carioca (de nascimento ou adoção) e de todo brasileiro que se preza e que respeita as suas raízes como povo. O samba é, ainda bem, algo indissociável da cultura e da identidade profundas do Rio e do Brasil. E é assim que ele vai continuar, queiram ou não coxinhas, golpistas e aculturados de todo tipo.

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