Posted On

14
julho
2016

A noite dos agogôs

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EDUARDO CARVALHO

Hoje abro alas para homenagear uma escola que, embora não seja “a minha”, tem desde sempre lugar cativo no meu coração: o Império Serrano. Vivi essa história há quase dez anos, no fim de 2006, e já a contei em outras paragens. Mas quero dividir com o público da Rádio Arquibancada a emoção que sinto toda vez que a relembro, como agora.

Naquela quinta-feira qualquer, hoje perdida no passado, a noite caminhava para o seu fim quando eles começaram a chegar. Cada um daqueles cento e poucos ritmistas ia posicionando seu instrumento no cimento da Marquês de Sapucaí. No meio deles, o mestre ia afinando os 24 surdos. Alguns integrantes da escola, familiares, curiosos e uma ou outra alma penada nas arquibancadas dos setores 11 e 4 serviam de testemunha para o que ia acontecer.

Foi assim que acompanhei um ensaio da bateria do Império. A parte final da avenida dormia, na penumbra deixada pelos poucos refletores acesos, quando ecoaram os sons e tons de surdos, caixas, chocalhos, tamborins, cuícas – e, claro, dos agogôs da Serrinha. Era o início de um espetáculo inesquecível.

Para mim, na verdade, o “show” havia começado um pouco antes: durante alguns minutos de conversa na pista, o então mestre Átila generosamente me abriu o baú da sua bateria. Por meio de gestos e palavras, nada mais, levou-me aos meandros da cadência, do ritmo, da diferença daquela para outras baterias, da função de cada um. Com rara simplicidade, explicou-me como tinha renovado algumas coisas para que, paradoxalmente, a bateria imperiana não deixasse de ser ela mesma.

Ficou fácil entender o que foi que os jurados ouviram para que ela tivesse sido uma das duas únicas a tirar todas as notas dez no Carnaval anterior. Potencializando a raiz e o talento dos seus ritmistas, o mestre havia introduzido, um ano antes, duas alterações na formação e na distribuição deles e de seus instrumentos.

Uma delas: os surdos de primeira (a marcação), passaram para o meio da bateria. Isso mesmo. Ele os distribuiu, em quantidades iguais, ao longo de cada um dos lados do corredor central da bateria – aquele espaço que se abre entre os músicos para que o mestre e seus auxiliares possam transitar pela ala. E posicionou os surdos de segunda (a resposta) nas extremidades da bateria. Com isso, dizia, a batida ficava mais lenta, mais cadenciada do que se estivessem uns (primeira) muito próximos dos outros (segunda).

A outra modificação: mandou o naipe de tamborins lá para trás, fechando a formação, perto do “peso” (surdos de corte e caixas). Por quê? Porque assim os tamborins podiam florear à vontade sem correr o risco de atravessar.

– Com isso resolvo o problema do atraso no som, que sempre acontece na avenida, e corro menos riscos, sem perder a cadência e o toque dos agogôs, que são as nossas marcas – ensinou, na época.

O ensaio prosseguiu até que aquela orquestra de tambores se aproximou da Apoteose. A madrugada caía e fui embora com a sensação de ter vivenciado algo de rara beleza.

Levei comigo, na cabeça e no peito, o som dos agogôs e da fina batucada sem igual do Império Serrano, sempre a nos lembrar que história, tradição e samba de verdade nunca serão meros coadjuvantes no Carnaval. Ao contrário do que alguns tentam nos fazer acreditar, ano após ano, é com esse tipo de artista que se faz uma Escola de Samba.

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