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Atrás do “mendigo Joãosinho Beija-Flor”, uma segunda-feira única
AYDANO ANDRÉ MOTTA
A mais incrível segunda-feira de todas, na odisseia carnavalesca, se consumou na manhã da terça. Burocracias do calendário – na bula da folia, foi em 6 de fevereiro de 1989, a segunda noite da maratona na Passarela do Samba, o momento definitivo. O lusco-fusco do amanhecer nublado de verão emoldurava a Passarela do Samba quando a Beija-Flor apontou para apresentação como nunca haveria novamente: “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, o enredo sobre o lixo que vira luxo.
Mágico, arrebatador, inesquecível – o maior desfile de todos os carnavais.
A azul e branco nilopolitana foi a penúltima das 18 (!!!) escolas daquele Carnaval inchado pela virada de mesa do ano anterior. Logo no início da apresentação pontilhada por superlativos, produziu a imagem mais disseminada da história da festa – o Cristo mendigo, embrulhado num plástico preto e carregando a frase “Mesmo proibido, olhai por nós”.
(Aqui, contribuição decisiva de um coautor improvável: Dom Eugenio Sales, cardeal-arcebispo do Rio, foi à Justiça censurar a alegoria do Redentor em andrajos. A repressão produziu a imagem que ganhou o mundo.)
A noite teve grandes momentos – a Vila Isabel com “Direito é Direito”, o Império Serrano e “Jorge Amado Axé Brasil” e, mais do que qualquer outra, a Imperatriz Leopoldinense impecável com “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas Sobre Nós”. (No domingo, ainda teve a “Festa Profana” da União da Ilha.) Mas nada se compara ao que realizou a Beija-Flor.
Era meu segundo ano na Sapucaí. Repórter do finado Jornal do Brasil, tinha acabado de trabalhar mas fiquei na avenida, fascinado – desde o ano da estreia, o de “Kizomba, a Festa da Raça” da Vila Isabel – com aquele mundo incrível e desconhecido das escolas de samba. (Nasci na classe média de Niterói, tipo humano que detesta a festa dos pretos, prefere passar horas engarrafado na estrada para a Região dos Lagos.)
Estava na pista quando apontou aquela escola de que ouvira falar remotamente até ali. Foi daqueles momentos, raros, em que a passarela mítica se conecta à tomada na voltagem mais alta. Eletrizada, a plateia viu passar a Beija-Flor exuberante no banquete dos miseráveis, na opulência das alegorias, no canto inflamado de seus componentes. Público e escola, todos terminaram ensopados, obra de Joãosinho Trinta que, fantasiado de gari, empunhava mangueira de um carro-pipa e encenava sua apoteose com água.
Quando acabou a festa espetacular, estavam cristalizadas duas decisões: dali em diante, seria torcedor daquela escola e seguiria o “mendigo Joãosinho Beija-Flor”, como imortalizou Caetano Veloso em “Reconvexo”. Gênio maravilhoso e soberano, Joãosinho Trinta encontrou em Nilópolis sua casa mais profícua. Sedimentou a identidade de um povo que produz encantos apesar de todos os obstáculos.
Para mim, começou naquela segunda-feira de Carnaval de 1989.
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