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07
setembro
2016

Sem síncope, sem samba

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasO ambiente das escolas de samba não é afeito ao contraditório. Uma crítica, normalmente, é tomada como ofensa, o que só atrapalha o desenvolvimento das próprias agremiações. Dito isso, farei uma crítica aqui relacionada aos sambas de enredo e a dança do samba, com a mais absoluta convicção de que ela é importante para que pensemos os caminhos do gênero entre a tradição e a renovação.

Indo direto ao ponto: muito do que vejo fortalece a certeza de que há hoje cada vez menos vinculo entre as escolas de samba e o samba (falo aqui do samba como bailado coreográfico, ritmo, manifestação musical de compasso 2/4 marcada pela síncope e em todo complexo civilizacional que o cerca).

À época escrevi que gostava da maior parte do samba, mas não gostava do refrão do samba de enredo do Império da Tijuca, em 2014. Aquele “vai tremer, vai tremer” não se enquadrava na síncope do samba (que é o que diferencia o samba de qualquer outro ritmo) em nenhuma hipótese. Pode ser animado, levantar a passarela, despertar defuntos das tumbas… Só não é samba.

A síncope é uma alteração rítmica que se estabelece quando ocorre o prolongamento do som de um tempo fraco em um tempo forte, criando uma cadência (série de intervalos) inesperada. O samba urbano carioca, e o samba de enredo é um de seus gêneros, se define exatamente a partir da síncope, e da maneira como ela foi dinamizada na transição entre o samba-amaxixado que se fazia nas casas das tias baianas (aquele de Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Caninha e Sinhô) e o samba do Estácio (aquele de Ismael, Bide, Baiaco, Rubem, Brancura, Edgar, Newton, Tancredo Silva), que se espraiou por Oswaldo Cruz, Salgueiro, Mangueira, etc.

Na legítima e necessária busca por caminhos novos para o samba de enredo, o que se verifica hoje é a profusão de sambas quadrados, distantes da síncope, marcados ainda por alguns maneirismos do pagode comercial. Exceções confirmam a regra (e ainda bem que elas existem!).

Quando o ritmo do samba é acelerado (e ainda que hoje os andamentos estejam um pouco mais cadenciados, a aceleração das baterias continua sendo um problema para que tecnicamente um samba possa ser tocado), ocorre naturalmente o ajustamento da síncope em uma configuração rítmica mais exata, sem o vazio do som, o prolongamento do pulso do tempo fraco em um tempo forte que caracteriza o desenho inesperado e é o fundamento rítmico do samba.

Ao aproximar-se estruturalmente da marcha quadrada (em alguns casos vira mesmo um frevo), o samba também cai em desenhos melódicos mais previsíveis e interfere na própria dança do passista. O corpo, afinal, faz os passos do samba a partir da imprevisibilidade da síncope rítmica. O enquadramento do ritmo sugere, então, que o corpo acompanhe a música a partir da coreografia de passo marcado. Sem síncope, o corpo não samba.

Não acredito em tradição como um conceito estático. Tradição é um impulso que sugere diálogo constante entre a manutenção e a transformação. O samba de enredo não pode parar nas décadas de 1940,50, 60, 70, 80… Ele precisa dinamicamente dialogar com o seu tempo.

O problema é que, como gênero de música de carnaval, o samba de enredo está se desmilinguindo. Pode ser bom, pode ser animado, pode ser funcional, comovente, obra-prima até. Só não é, sem a síncope, “samba de sambar”, como dizia o grande Babaú da Mangueira sobre o estilo que veio do Estácio. É música para que o corpo deixe de ser protagonista para ser coreografado. O resultado desse processo, a domesticação do corpo da sambista, é um desastre cultural.

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