Posted On

03
agosto
2016

As histórias das grandes ventanias

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasAs primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro surgiram em um contexto em que o estado brasileiro queria disciplinar o carnaval das classes que o próprio estado chamava de “perigosas”. Desde o final da década de 1930, como resultado de uma negociação neste sentido, os regulamentos estabeleciam que os enredos tivessem que ter como temática a história oficial brasileira, as grandes efemérides, a pedagogia da pátria.

As escolas de samba, por isso, não cantavam o preto, a preta, os saberes afro-brasileiros. Será mesmo? Eu acho que não.

Praticamente todas as escolas de samba pioneiras do Rio de Janeiro eram dedicadas a um orixá. Nas décadas de 30, 40, todavia, isso não podia ser explicitado. O que se podia verbalizar era o discurso oficial do Brasil dos poderosos. A turma do samba, entretanto, tinha uma forma de dizer o que não podia ser dito: quem falava isso, com uma gramática iniciática que fazia todo sentido para as comunidades afrodescendentes, era o tambor.

Um breve exemplo: a Mangueira ganhou o carnaval de 2016 louvando Oyá, no enredo sobre Maria Bethania. Acontece que o ritmo do agueré de Oyá caracterizou, nos tempos românticos dos desfiles, o toque das caixas da bateria da Mangueira, cruzado também com a pegada dos tambores das Folias de Reis. A Manga, portanto, louva Iansã há tempos, mas nós, acostumados que estamos apenas às gramáticas convencionais, não percebemos isso.

A partir do momento em que os enredos enveredaram explicitamente por temas afro-brasileiros, sobretudo a partir dos anos de 1960, duas linhas caracterizaram de forma mais direta essa pegada: os enredos de caráter explicitamente políticos (como o Zâmbi dos Palmares do Salgueiro, de 1960) e aqueles mais voltados para o campo das mitologias e saberes religiosos. Neste último caso, o dos enredos de pegada mais próxima ao campo da religião, há que se ter o cuidado para que a dimensão pitoresca ou folclorizante não acabem produzindo visões equivocadas. Exemplifico abaixo.

No carnaval de 2016, fiquei impressionado com a quantidade de gente, inclusive de uma turma que trabalha com carnaval, que insistiu em dizer, inclusive nos meios de comunicação, que o Salgueiro levou o candomblé e o orixá Exu para a avenida em seu desfile. Não foi isso. O Salgueiro levou o povo de rua, a malandragem da chamada macumba carioca, das quimbandas, catimbós e encantarias de jurema, ilustrando uma parte do enredo sobre a história da malandragem carioca, que era mais amplo.

Na escola inteira só apareceu um destaque representando um Exu africanizado no final do desfile, ainda assim sem o ogó (o bastão do axé), um elemento fundamental de sua indumentária. Na frente da escola vinha Seu Tranca-Rua, com sua desconcertante multiplicidade cruzada de quem cozinha a gambá na hora que quer.

No fundo, persiste em muita gente a ideia essencialista (não gosto dessa pegada) de que o candomblé tem uma legitimidade que as giras cruzadas não têm. O que li de reportagens e recebi de perguntas sobre a importância do Salgueiro e da Mangueira terem falado do candomblé não está no gibi. Tentei argumentar que não foi exatamente assim, mas ficou difícil.

Quem passou pela avenida com o Salgueiro foi a turma da guma, da curimba, da raspa do tacho, da beleza desconcertante e amedrontadora da rua, dos feitiços da jurema, dos catimbós, das tabernas ibéricas e biroscas cariocas, daqueles que correram gira pelo norte. E o traço mais revolucionário do enredo, a meu ver, estava aí. Falar de orixá em desfile de escola de samba é coisa relativamente constante e eu citaria aqui de cabeça uns cinquenta enredos sobre isso com a maior facilidade. Falar das curimbas brasileiras é outro papo.

Tudo isso me leva a concluir afirmando que escolas de samba são prioritariamente, isso não pode ser perdido, instituições culturais, dotadas de potencial para elaborar narrativas divergentes daquelas consagradas pelas visões normativas a partir de múltiplas gramáticas. Que as agremiações nos desafiem, encantem e ensinem: somos, afinal, metidos a sabichões, mas ainda não sabemos ler as histórias que o tambor conta sobre a beleza das grandes ventanias.

Veja Também

Artigos Relacionados

Categorias

Navegue por Assunto

Recentes

As Últimas da Arquibancada