Posted On

16
novembro
2016

O samba tem alegria?

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasEm breve chegará o verão e falta pouco para o carnaval. Permitam-me levantar, já pressentindo os efeitos do calorão e escutando fanfarras imaginárias, uma pequena lebre: temos, os interessados no assunto, que refletir sobre os efeitos do samba e do carnaval na representação da identidade cultural brasileira, já que ambos colaboram para certo corpo mitológico e simbólico da brasilidade. Penso, sobretudo, na publicidade e nas maneiras como a propaganda transporta o mito da democracia racial brasileira para o mito da democracia econômica na sociedade de consumo.

Neste sentido, diversas marcas usam e abusam do samba, do carnaval e de uma suposta alegria brasileira – pasteurizada pela estética uniforme da propaganda – como referências que buscam transformar esta mesma tradição em um elemento estimulador da inclusão pelo consumo de bens ou pelo desejo de consumi-los. A festa globalizada, em seu discurso fabular de harmonia e país possível pelo consenso, é aquela que não quer a fresta, propiciadora do inesperado e potencialmente ameaçadora da ordem normativa.

No tal mundo globalizado – sobretudo em seu viés cultural/econômico – o samba é, cada vez mais, instado pela indústria do entretenimento a se diluir em padrões uniformes, inclusive de performance, perdendo muitas vezes a vitalidade transformadora e as especificidades dos ricos complexos culturais que se desenvolveram em torno dele. O carnaval viaja no mesmo barco e eu mesmo estou dentro dessa embarcação; o que me obriga a um constante exercício de reflexão e crítica.

Diluídos, em clara estratégia mercadológica, em referências pouco afeitas a suas características fundamentais e dinamizadoras de novas perspectivas, o samba e o carnaval se inserem na globalização como elementos difusores do consumo padronizado e da uniformização dos hábitos. Eles ditam a roupa que devemos usar, o hit que devemos cantar, a alegria que devemos representar, o corpo que devemos ter e até a cerveja que devemos beber.

Muito mais do que gênero musical ou bailado coreográfico, o samba é elemento de referência de um amplo complexo cultural que dele sai e a ele retorna, dinamicamente. Nos sambas vivem saberes que circulam; formas de apropriação do mundo; construção de identidades comunitárias dos que tiveram seus laços associativos quebrados pela escravidão; hábitos cotidianos; jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, amar, matar, celebrar os deuses e louvar os ancestrais. Limitar o samba ao terreno imaginário onde mora a alegria brasileira do carnaval é um reducionismo completo.

Não custa recordar que o discurso do samba, e de toda a múltipla musicalidade oriunda da diáspora africana, também está no fundamento do tambor, que fala daquilo que nossas gramáticas não nos preparam para ler. O tambor – e são tantos! – vai buscar quem mora longe e isso é muito sério.

O samba – de cara podemos lembrar até da complexidade de experiências que o definem – é testemunho e fonte documental para constatar as nossas contradições poderosas; o nosso horror e as nossas escapadelas pelas frestas da festa: o beijo na cabrocha, o assassinato de Malvadeza Durão, a alvorada no morro, a prisão do Chico Brito que fuma a erva do norte, a ilusão de um olhar, o mulato calado que já matou um e se garante na inexistência do X-9 em Mangueira, os poderes do jongueiro cumba, o batizado do neguinho vestido de anjo em Pirapora, o preconceito racial no casamento do neguinho e da senhorita, as porradas que o delegado Chico Palha enfiava em macumbeiro nos tempos da vadiagem, a navalha no bolso, o revólver como maneira nossa de entrar no século do progresso, a mulher vitimada pela violência, submissa como Amélia, rebelde e altaneira como Gilda; o tiro de misericórdia no menino que cresceu correndo nos becos que nem ratazana e morreu como um cachorro, gemendo feito um porco… Tá tudo no samba.

Foi exatamente o samba, sobre o qual reflito sistematicamente, que me fez perceber e encarar um Brasil de complexidades que não comportam dicotomias reducionistas. O samba é um desconforto potente para que o Brasil se reconheça como produtor constante de horror e beleza. O samba é a entidade mais poderosa do nosso terreiro. É o filho mais duradouro dos tumbeiros, em tudo que isso significa de tragédia, redenção, subversão, negociação, resistência, harmonia, violência, afeto, afirmação de vida e pulsão de morte na nossa história.

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